Precariedade e desemprego na encruzilhada do movimento dos trabalhadores | Le Monde Diplomatique
A edição portuguesa do jornal Le Monde Diplomatique organizou no passado mês de Abril, por ocasião do seu 15º aniversário e dos 40 anos do 25 de Abril, um dossier dedicado às liberdades constitucionais. Vários autores abordaram, de diferentes pontos de vista, a actualidade de um conjunto de liberdades, depois de décadas em que estão previstas na lei após terem sido conquistadas pela mobilização popular. Este vasto dossier inclui artigos de Pedro Delgado Alves, Fernando Ramalho, Joana Lopes, José Rebelo, Sofia Lisboa, Miguel Cardina, Ricardo Pais Mamede, Mariana Avelãs e Tiago Gillot, da Associação de Combate à Precariedade – Precários Inflexíveis. Partillhamos aqui o texto do Tiago Gillot, que discute a liberdade sindical tendo em conta a precarização e o desemprego massivo.
Precariedade e desemprego na encruzilhada do movimento dos trabalhadores
O direito à associação em organizações de classe, conquistado pela luta dos trabalhadores e das trabalhadoras, esbarra no projecto de desmembramento do direito ao trabalho. A pulverização da classe trabalhadora e a tendência para a individualização das relações laborais, não resulta apenas de uma inevitável dinâmica económica: as profundas mutações das últimas décadas no mundo do trabalho não seriam possíveis sem o enfraquecimento da capacidade de organização dos trabalhadores. O regime social baseado no desemprego e na precariedade, em plena instalação, é por isso um poderoso projecto político para intensificar a exploração, mas também para desagregar a luta organizada que o poderia enfrentar.
A Constituição prevê a liberdade sindical, bem como os direitos que protegem a acção sindical e a possibilidade de criação e participação em órgãos de base nas empresas. Isso mesmo revela como a acção organizada dos trabalhadores é fundadora da própria democracia e um dos seus elementos essenciais. Mais do que isso, foi essa acção dos trabalhadores que conquistou, em grande medida, pilares que identificam a democracia, como os direitos no trabalho, mas também os serviços públicos ou o sistema previdencial. Em sentido contrário, sem ser necessária qualquer revisão da lei fundamental, estes direitos de organização estão hoje demasiado distantes, senão mesmo inacessíveis, para a maioria da classe trabalhadora.
O programa de desvalorização do trabalho, prosseguido sistematicamente ao longo das últimas décadas, não se limitou à relativização da sua importância na sociedade ou à brutal redução do salário. A precarização é a estratégia para impor um modelo de compressão de direitos e rendimentos, construída a partir da individualização das relações laborais e da chantagem permanente da incerteza. É uma estratégia precisa, porque ambiciona destruir a experiência da acção colectiva e das suas vantagens, com base na imposição do medo ou na circunstância permanentemente transitória da relação com o trabalho.
Esta gigantesca reconversão social avançou a um ritmo impressionante. O actual ciclo de políticas de austeridade intensificou este processo: em Portugal, as próprias estatísticas oficiais reconhecem que mais de metade da população activa se encontra já numa situação de precariedade ou desemprego. Está aqui o propósito do “ajustamento”, porque o “empobrecimento” tem esse sentido estratégico para a classe dominante. Basta constatar que, para lá dos cortes a direito nas áreas sociais, a obra de destruição do Governo de Passos e Portas se concentra nas profundas alterações na legislação laboral. Não por acaso, foi atingido o núcleo de direitos em que a lei ainda é uma garantia, como nas regras e na protecção no despedimento.
A degradação das condições de trabalho e de vida tem, portanto, uma orientação que não é fruto apenas de um contexto recessivo ou de uma economia que teima em funcionar contra os trabalhadores. O aumento da exploração não se exprime pela simples agressividade dos patrões ou até, numa versão mais benévola, na sua necessidade de se adaptar às exigências de um mundo globalizado pela concorrência feroz, mas antes requer a preparação de condições sociais e políticas. É por isso que o Governo mais liberal e anti-popular da democracia, suportado pelo poderoso dispositivo da troika, espalhou desespero e pobreza. É por isso, já agora, que o programa deste mesmo Governo admitia logo à chegada que ambicionava preparar caminho para a precariedade geral e infinita, por exemplo através da introdução do chamado “contrato único” sem direitos e para toda a gente.
Mas é preciso admitir que este projecto encontrou campo aberto para se poder afirmar. A ofensiva persistente seguida por sucessivos governos, mas também as alterações nas formas de produzir e nos modelos de exploração do trabalho, desenhou um território de grandes dificuldades para o movimento organizado.
O sindicalismo, incluindo o que nunca abdicou do combate político e da mobilização, preparou-se para um contexto de negociação, aos diferentes níveis, baseado na capacidade de representação e na força da vinculação. Esse terreno, onde foram obtidas pequenas e grandes conquistas, revelou-se no entanto adverso perante as rápidas mutações que resultaram na desvalorização da concertação e no enfraquecimento da posição dos trabalhadores na negociação, por um lado, e na generalização da precariedade, por outro.
O cenário actual, dominado pela política de hostilidade aberta aos trabalhadores, encontra vastos sectores excluídos dos direitos elementares e marginalizados da mais ténue experiência de organização. Entre as mais jovens gerações de trabalhadores, onde se decide o futuro do movimento, esta condição está a tornar-se perigosamente generalizada. A realidade reclama, de forma inadiável, que a luta contra a precariedade e o desemprego esteja no centro da acção colectiva do campo do trabalho.
Esta é a questão decisiva com que se confronta o movimento dos trabalhadores, que exigirá ultrapassar rotinas e adaptar modelos de organização. A afirmação do movimento de trabalhadores precários, algumas experiências concretas de lutas sindicais, bem como exemplos de auto-organização de trabalhadores, são pistas fundamentais para este caminho. A recente luta na Linha Saúde 24 é um extraordinário sinal de esperança, porque foi precisamente na resposta colectiva que estes trabalhadores descobriram forças para enfrentar a chantagem e exigir o direito ao contrato e ao salário.
Debater hoje o direito à organização consagrado constitucionalmente coloca-nos, pois, perante a exigência de não adiar as questões mais difíceis. Os últimos anos mostram-nos que não podemos esperar que alguma inversão da actual tendência nos salve da ameaça real da perda de importância das organizações de trabalhadores no conjunto da sociedade. A luta pelo direito ao trabalho é, 40 anos depois da revolução, um combate fundamental pela democracia.
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