Recibos Verdes: autópsia de uma fraude

Longa vai a história dos Recibos Verdes. Foram duas décadas de contratações ilegais, sub-pagamentos, recusa de contratar as pessoas conforme a sua actividade real, de taxar quem trabalha segundo o seu rendimento real,  cobrança de dívidas dos patrões aos seus empregados, e a partir dessas dívidas penhoras de bens, casas, contas, enganos recorrentes na cobrança das contribuições à Segurança Social. Como os tempos são, no entanto, de agravar as injustiças, o governo, depois de criar uma unidade especial destinada a cobrar dívidas ao fisco dos recibos verdes, passa na Lei do Orçamento de Estado, a considerar dívidas à Segurança Social superiores a 3500 euros como fraude que pode resultar numa pena de prisão de até três anos ou multa até 180 mil euros.

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Os Recibos Verdes foram a forma vanguardista encontrada por governos e patrões para impôr a precariedade em Portugal. A “flexibilidade” entrou principalmente de forma ilegal no dia-a-dia de quem trabalha. Mas a ilegalidade foi-se impondo enquanto regra e mesmo após todas as iniciativas que exigiram o retorno à legalidade, continuam a existir centenas de milhares de pessoas a trabalhar a falsos recibos verdes, com todas as injustiças que isso acarreta, e que viram mais uma vez a sua situação agravada. Os golpes publicitários e propagandísticos, como por exemplo aqueles encetados por Pedro Mota Soares (enquanto deputado da oposição opunha-se à cobrança de dívidas aos recibos verdes e à penhoras, defendendo que os direitos dos cidadãos sobrepunham-se à aplicação coerciva da cobrança pela máquina do Estado), rapidamente desvaneceram-se, e o mesmo, hoje ministro, tornou-se o principal “carrasco” dos precários. Apesar do seu aparelho propagandístico continuar a acenar com um “subsídio de desemprego” inatingível para recibos verdes, legitimando a ilegalidade.

Os últimos dois anos têm sido particularmente difíceis: depois de ser aprovado pelo PS um código contributivo extremamente penalizador para quem trabalha a recibos verdes, passando a contribuição a depender dos ganhos do ano anterior e não do rendimento real mês-a-mês e aumentando a incidência de taxação, com a entrada em vigor e aplicação do mesmo começaram os erros, que se mantiveram até hoje – sempre no mesmo sentido, sobre-cobrança de impostos, principalmente através da colocação em escalões superiores de contribuição. Ao mesmo tempo o governo estendeu uma rede sobre os recibos verdes e começou a cobrar dívidas de forma cega, penhorando bens e congelando contas. Perante a petição Antes da Dívida Temos Direitos, que recolheu 12 mil assinaturas exigindo que se averiguasse se os trabalhadores eram verdadeiros ou falsos recibos verdes antes de se cobraram as dívidas, governo passou a exigir processos em tribunal contra empregadores para parar as cobranças. O Mundo ao contrário. Os últimos meses viram, além da continuação das cobranças coercivas e dos erros sucessivos na aplicação do Código Contributivo, uma nova escala de ataques: os recibos verdes são as grandes vítimas do Orçamento do Estado, com um aumento do rendimento tributável de 70 para 75%, com uma taxa de retenção que passa dos 21,5% para os 25%, a sobretaxa de 3,5% do IRS, somando ainda 29,6% de contribuição para a Segurança Social e frequentemente ainda os 5% do patrão. No fim, quem trabalha a recibos verdes leva para casa menos de metade do seu salário. A vergonha é tamanha que o governo até decidiu mudar o nome dos recibos verdes, para disfarçar.

Mas como os tempos não estão para doçuras, continua a sua carga de ataque sobre os recibos verdes e, depois de criar uma unidade especial de cobrança de dívidas para os trabalhadores “independentes” – o Comité de Cumprimento Fiscal – avançou para uma medida inédita: passar a considerar dívidas acima de 3500 euros à Segurança Social um crime de fraude, que pode conduzir a 3 anos de prisão ou 180 mil euros de multa, como havíamos anunciado em 28 de Dezembro. É difícil concluir quando é que ultrapassámos o limite, pois na verdade desde o início que a situação de quem trabalha a recibos verdes ultrapassou o limite – do bom-senso, do racional, do legal, do ultrajante – mas de facto a inversão total do ónus da culpa tornou patente onde querem chegar governo e patrões. As vítimas de uma das maiores fraudes sociais da história do trabalho em Portugal – os recibos verdes – vêem-se hoje perante a iminência de serem elas mesmas acusadas de fraude por não conseguirem pagar as suas contribuições. E a abolição da prisão por dívida, conseguida há largas décadas, volta atrás. Não há dúvida que o caminho escolhido é este: tornar a ilegalidade lei, tornar o imoral legal e a lógica um acessório para colocar de lado. Já vai deixando de ser notícia falar das injustiças para quem trabalha a recibos verdes. E como ultrapassámos o limite temos de começar a pensar seriamente no que fazer quando isso ocorre. Começamos o ano de 2013 como se estivéssemos no meio do século XIX. E agora como então, uma só coisa é certa: como está não pode ficar.

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